Estupro e assassinato da paquistanesa Noor Muqaddam, de 27 anos choca o país e o mundo
Em 20 de julho de 2021, o telefone tocou em uma delegacia do bairro de classe alta F-7 em Islamabad, a capital do Paquistão. Uma pessoa – cuja identidade é mantida em sigilo – informou à polícia que havia sido cometido um crime na região. Quando a polícia chegou ao local, Noor Muqaddam, com 27 anos de idade, já estava morta.
Segundo relatos da polícia, Muqaddam havia sido mantida refém por dois dias por um conhecido seu, de nome Zahir Zakir Jaffer, filho de uma das famílias do setor industrial mais ricas do Paquistão. Ela havia implorado por sua liberdade, segundo revelou o relatório da investigação policial, e imagens da televisão chinesa CCTV mostraram que ela tentou escapar pelo menos duas vezes. Um vídeo mostra Muqaddam pulando de uma janela no primeiro andar, mas ela é arrastada de volta para dentro da casa, onde foi torturada, estuprada, assassinada e, por fim, decapitada.
O “crime” de Muqaddam, segundo seu assassino contou à polícia, foi recusar-se a se casar com ele.
Forte comoção mundial
Os terríveis detalhes do crime reverberaram por todo o Paquistão. Ativistas dos direitos das mulheres foram às ruas, houveram vigílias à luz de velas e hashtags como #JustiçaParaNoor e #FimDoFeminicídio ganharam popularidade nas redes sociais. Muitas mulheres manifestaram-se e compartilharam suas próprias histórias de violência doméstica e abusos sexuais.
A 300 km de Islamabad, na cidade de Lahore, no leste do país, a advogada Khadija Siddique não conseguiu dormir em julho passado, quando soube do assassinato de Noor Muqaddam. “Foi um grande choque de realidade e um retorno ao passado para mim porque eu poderia ter estado no lugar de Noor”, contou ela à BBC.
Khadija Siddique foi esfaqueada 23 vezes pelo namorado em uma rua movimentada de Lahore em 2016, depois do rompimento do casal. Seu agressor foi inicialmente condenado a sete anos de prisão, mas sua sentença foi reduzida para apenas dois anos.
Em 2018, o Tribunal Superior de Lahore o absolveu, alegando que os tribunais não poderiam confiar apenas na declaração da vítima. A Suprema Corte do Paquistão restaurou a sentença posteriormente. Ele foi libertado da prisão em 17 de julho de 2021, apenas três dias antes do bárbaro assassinato de Noor Muqaddam.
Khadija Siddique pôde contar com apoio familiar e seu caso conseguiu atenção da imprensa, mas muitas outras não têm a mesma sorte. O julgamento foi acelerado, mas, em muitos casos de agressão violenta contra as mulheres, segundo ela, a justiça nunca chega.
“Falta de conhecimento e de treinamento adequado dos responsáveis pelos inquéritos geram investigações deficientes. Evidências importantes não são coletadas, normalmente são descartadas ou a coleta sofre atrasos, a ponto de perderem seu valor como prova no tribunal”, afirma ela.
Falta de dados oficiais
Não há dados confiáveis sobre os crimes contra as mulheres no Paquistão, mas as Nações Unidas estimam que a taxa de condenação nesses casos é de 1 a 2,5%, o que explica por que muitas vítimas decidem não se manifestar.
As vítimas que conseguem o julgamento podem acabar sendo atacadas – submetidas a longos interrogatórios que normalmente não têm relação com o crime, mas sim questionam a integridade das mulheres.
“Quando você começa a caluniar as mulheres, falando sobre o seu passado e seus relacionamentos, elas imediatamente se retraem”, explica Siddique. “As mulheres receiam sofrer censura moral, que a culpa recaia sobre as vítimas, e esses medos as levam a não denunciar a violência que normalmente sofrem dos homens com quem têm relacionamento ou seus conhecidos.”
O Paquistão é o 153° colocado (entre 156 países) no índice mundial de igualdade de gênero, apesar dos esforços dos últimos anos para fazer aprovar novas leis para proteger as mulheres e criar tribunais especiais para ouvir casos de violência de gênero.
Mas as coisas estão melhorando, segundo Nilofer Bakhtiyar, presidente da comissão nacional do status da mulher. “Esses casos de destaque sempre existiram, mas agora eles estão sendo noticiados pela imprensa”, segundo ela. “As famílias dessas vítimas também oferecem muito apoio. No passado, isso não acontecia.”
Bakhtiyar acredita que o clamor público sobre o assassinato de Noor Muqaddam foi parte da mudança. “Existe urgência para combater esse tipo de violência contra as mulheres. Os homens agora estão falando sobre isso, especialmente os que ocupam cargos superiores. E os legisladores não querem mais empurrar a questão para debaixo do tapete”, afirma ela.
Mas a violência contra as mulheres permanece sendo um problema muito sério no Paquistão. Um relatório recente da ONG Human Rights Watch estimou que cerca de 1 mil mulheres morrem nos chamados “crimes de honra” todos os anos. Os ativistas acreditam que o pensamento misógino está enraizado tão profundamente na sociedade que levará anos para ocorrer qualquer mudança real.]
Um mês antes do assassinato de Noor Muqaddam, o primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan foi acusado de culpar as vítimas e incentivar a misoginia quando sugeriu que o aumento das quantidades de crimes sexuais no país foi causado, em parte, pelas roupas que as mulheres usavam.
“Uma mulher que usar poucas roupas causará impacto sobre os homens, a menos que eles sejam robôs”, afirmou Khan em entrevista à rede de TV norte-americana HBO. Seus comentários irritaram as mulheres e desencadearam protestos em todo o país. Um fio pedindo às sobreviventes que compartilhassem fotografias das suas roupas e histórias de abuso tornou-se um dos assuntos mais comentados no Twitter.
Em defesa do primeiro-ministro, mulheres parlamentares do seu partido (PTI) afirmaram que a questão havia sido retirada de contexto e que ele deveria ser julgado pelas medidas que seu governo está tomando para proteger e dar poder às mulheres.
Mas será que o assassinato de Noor Muqaddam pode tornar-se um marco para o movimento das mulheres no Paquistão e poupar outras famílias do mesmo sofrimento?
“Ninguém no Paquistão, nenhuma família deveria precisar passar pelo que estamos passando”, declarou à imprensa a irmã de Noor Muqaddam, que liderou a campanha Justiça para Noor.
Mas Khadija Siddique é cética. “Nós somos mestres na arte do silêncio; as mulheres são forçadas a acreditar que o que quer que aconteça com elas é sua própria culpa”, segundo ela. “Justiça para Noor é um passo adiante, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.”
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