Especialista Karla Borges contesta a forma de cancelamento dos débitos anunciada pela prefeitura de Salvador

Especialista Karla Borges contesta a forma de cancelamento dos débitos anunciada pela prefeitura de Salvador

A prefeitura de Salvador publicou decreto, que regulamenta o artigo 234 da Lei 7.186 de 2006, dando baixa na inscrição de quase 30 mil empresas e profissionais autônomos inativas por mais de dois anos. O Decreto 35.390/222 foi publicado na última quarta-feira, 28. Para falar sobre o assunto, entrevistamos a professora Tributarista Karla Borges. 

Conexaoin: O Prefeito de Salvador publicou um Decreto 35.390/22 em 28/04/22 que possibilita a ele efetivar o cancelamento de créditos tributários de contribuintes que preencham os requisitos de inatividade, o que a Senhora pensa sobre o assunto?

KB: O Chefe do Poder Executivo não tem a faculdade de cancelar esses créditos tributários em caráter geral. Sob o pressuposto de regulamentar o artigo 234 da Lei 7.186/06 que dispõe sobre suspensão e baixa de contribuintes em situação irregular, ele publicou um decreto quando não tem competência para fazê-lo, uma vez que extinção de créditos tributários é matéria de lei específica e, portanto, cabe a ele enviar um projeto nesse sentido à Câmara Municipal de Salvador para que os vereadores apreciem e aprovem ou não.

Conexaoin: Estaria o Prefeito usurpando a competência Legislativa?

KB: Exatamente! Talvez por sugestão equivocada da Secretaria Municipal da Fazenda e sem observar os aspectos legais, o Prefeito de Salvador terminou por criar uma situação delicada para ele quando publicou no site da SEFAZ uma relação de empresas que estão suspensas e passíveis de terem seus débitos extintos por decreto. Antes que essa ação seja efetivada, é importante lembrar ao gestor municipal aquilo que dispõe a nossa Carta Magna. O artigo 150, parágrafo 6º da Constituição Federal estabelece que: “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias ou o correspondente tributo ou contribuição.” Se ele procede de forma diferente, além de violar a Constituição Federal, ele poderá ter sérios problemas na aprovação das contas do Município de Salvador com consequências sérias civis e penais que podem culminar também na inelegibilidade.

Conexaoin: Então só Lei pode autorizar o cancelamento das dívidas dos contribuintes de Salvador?

KB: Sim. Como a remissão implica em renúncia fiscal, deve subordinar-se a três princípios básicos: não pode haver remissão (extinção de créditos tributários) sem lei específica municipal. Cabe ao Legislativo Municipal aprovar um projeto de lei, dispondo sobre a matéria, conforme preceitua o já citado artigo 150, § 6º da CF; a lei de Diretrizes Orçamentárias deve dispor sobre as alterações na legislação tributária que impliquem na receita. (Art. 165, §2º CF); projeto de lei deve ser acompanhado de demonstrativo do impacto nas receitas, decorrentes de remissões e benefícios de natureza tributária. (Art. 165, §6º)

Conexaoin: Estaria o Prefeito descumprindo a Lei Orgânica Municipal?

KB: Perfeito. No caso específico dos Municípios, tendo em vista a disposição contida no parágrafo único do artigo 11 do Ato da Disposições Constitucionais Transitórias, a Lei Orgânica Municipal deve obediência às Constituições Estadual e Federal. Ora se a Lei Orgânica do Município do Salvador reproduz a Constituição Federal no seu artigo 150, e ainda que não o fizesse, o Chefe do Executivo não deveria infringir um dispositivo constitucional, nem do Executivo não deveria infringir um dispositivo constitucional, nem mesmo a sua própria Lei Orgânica.

Conexaoin: E quanto ao impacto dessa medida na arrecadação?

KB: Conceder remissão ao contribuinte num momento de estagnação econômica que estamos vivendo pode não ser uma iniciativa ruim, mas requer, além de cuidados, estudos de viabilidade e é preciso proceder como manda a legislação em vigor, cumprindo as formalidades. Não se pode atropelar a lei, pois em caso de arguição dos órgãos de controle, serão os contribuintes que mais sofrerão as consequências. Os gestores não têm a liberdade de cancelar dívidas, mas podem propor em determinados casos concretos e através de projetos de lei a apreciação do poder legislativo para conceder benefício tributário.

Ademais, ainda seria injusto e não isonômico com aqueles que já pagaram, que estavam com suas empresas também desativadas e em situação de irregularidade e que não terão direito à restituição porque assim prescreve a legislação.

Se um projeto de lei sobre essa matéria fosse apreciado pelo Legislativo, todos aqueles contribuintes com parcelamento em curso poderiam ter seus débitos extintos também, caso as suas empresas não mais existam. Apenas as parcelas vincendas, uma vez que para as vencidas não caberiam restituição.

Conexaoion: O que dispõe a lei de Salvador sobre remissão, sobre cancelamento de dívidas dos contribuintes?

KB: Nos casos concretos, específicos, normalmente através de processos administrativos, o Chefe do Poder Executivo fica autorizado a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, desde que atenda à situação econômica do sujeito passivo; por erro ou por ignorância escusáveis do sujeito passivo quanto à matéria de fato; por diminuta importância do crédito tributário; por considerações de equidade, com relação às características pessoais ou materiais do caso; ou por condições peculiares a determinada região.

A intenção do Executivo em regulamentar o artigo 234 não guarda relação com os pressupostos sinalizados na lei de Salvador para concessão do benefício. Para que essa remissão fosse concedida, caberia ao Prefeito analisar caso a caso, pois há na lei a exigência que se apure se o beneficiado satisfaz as condições previstas, e, caso não as cumpra ou deixe de cumprir os requisitos para a concessão do favor, cobra-se o crédito, acrescido de juros de mora. Enfatizando sempre que quando se trata de remissão ou qualquer benefício tributário, o Chefe do Poder Executivo não pode por decreto extinguir débitos do contribuinte que estejam sem funcionar ou sem pagar porque essa medida é matéria de reserva de lei como prescreve a Constituição Federal.

Conexaoin: Então o cancelamento desses créditos, podendo perdoar as dívidas dos contribuintes seria renúncia de receita municipal?

KB: Sim. “Renunciar à receita é deixar de receber valores que poderiam ser utilizados para realização de despesas visando diversos direitos e efetivação de políticas públicas, daí a necessidade de serem limitadas, para que sejam realizadas apenas quando necessárias ao interesse público. O art. 14, § 1o da Lei de Responsabilidade Fiscal enumera as modalidades de renúncias de receitas, quais sejam, anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação na base de cálculo que gere redução discriminada de tributos e contribuições, além de outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado. Entende-se que o rol presente no art. 14, § 1o é apenas exemplificativo, pois considera-se renúncia de receita também qualquer tratamento diferenciado resultante de benefício, por poder afetar o equilíbrio entre receitas e despesas (NÓBREGA; FIGUEIRÊDO).”

E pela CF, renunciar receita, através de remissão (uma das formas de extinção do crédito tributário prevista no Código Tributário Nacional) é matéria de lei.

Conexaoin: O que a senhora quer dizer é que a Prefeitura de Salvador não pode cancelar débitos de contribuintes inativos sem apreciação da Câmara Municipal e sem lei específica¿

KB: Isso. A solução seria o Poder Executivo encaminhar para o Poder Legislativo, um projeto de lei sugerindo a remissão dos créditos previstos, de forma detalhada e justificada, contemplando indispensáveis demonstrativos dos efeitos dessa renúncia sobre as receitas, obedecendo, ainda o que reza o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Afinal, um eventual descumprimento da LRF pode constituir ato de improbidade administrativa. Vale lembrar sempre que a autoridade administrativa, em princípio, não pode dispensar o contribuinte da dívida tributária. Como ato de renúncia que é, não pode ser praticado pela autoridade administrativa, porque ela na verdade não é credora na relação tributária. Por isto, a remissão no Direito Tributário depende de expressa previsão legal. A lei é a forma pela qual o Município pode validamente manifestar sua vontade de renunciar ao tributo. 

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