Presidência da República defende no Supremo que violência doméstica comprovada pode impedir repatriação de crianças
Elaborado pela AGU, conjunto de informações enviado à Corte fundamenta pedido de afirmação da constitucionalidade de dispositivos da Convenção da Haia
A Presidência da República enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um conjunto de informações com posição favorável ao reconhecimento da violência doméstica como possível fator de impedimento para a repatriação de crianças que viviam em país estrangeiro e foram trazidas ao Brasil por um dos genitores sem autorização do outro.
Elaboradas pela Advocacia-Geral da União (AGU), as informações foram prestadas à Corte pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após solicitação do ministro Luís Roberto Barroso, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7686, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Por meio da ação, o partido busca conferir interpretação conforme a Constituição ao artigo 13, parágrafo 1°, alínea b, da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Convenção da Haia). Como regra geral, a Convenção prevê que, caso um dos genitores retire a criança de seu país de residência habitual e a leve para outro sem a autorização do outro genitor, o país para onde a criança foi levada (retenção ilícita) deve determinar seu retorno à nação de onde ela foi retirada.
No entanto, a própria Convenção prevê exceções à regra geral. Uma delas está no próprio artigo questionado na ação ajuizada pelo PSOL no STF. O dispositivo prevê que nenhum país é obrigado a ordenar a restituição da criança se ficar provado que existe um risco grave de ela ficar sujeita a “perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”.
Na manifestação enviada ao STF, a Presidência defende que a violência doméstica é passível de ser inserida nessa exceção, uma vez que pode, com base na prova produzida em cada caso, configurar risco grave de perigo à criança, ainda que ela não seja a vítima direta da violência. Em sua conclusão, o documento enviado pelo presidente do Brasil destaca, porém, que é preciso haver não apenas suspeita, mas a “comprovação de violência doméstica cometida contra a genitora subtratora (ou contra o genitor subtrator)”.
Nos casos em que há somente suspeita, destaca o documento, é necessário que “haja, no mínimo, oportunidade para a produção de provas”. A manifestação salienta que, “nesse sentido, a Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Mulheres destacou que ‘a celeridade no retorno do menor subtraído deve ser buscada, todavia, sem que isso implique a determinação automática da restituição sem uma dilação probatória razoável quando houver suspeita de violência doméstica’.”
O conjunto de informações elaborado pela AGU também ressalta que essa interpretação está alinhada ao que já vem sendo defendido pelo Brasil em âmbito internacional e pela União no âmbito interno. Assim, sublinha o documento, “cabe às autoridades competentes – consideradas as questões de gênero envolvidas, inclusive quanto aos standards probatórios – avaliar se está constatada a violência doméstica” para decidir sobre a aplicação da exceção prevista na Convenção de Haia, em cada caso concreto.
Metade dos casos tem alegação de violência doméstica
Segundo levantamento da AGU, cerca de metade das 173 ações sobre subtração internacional de crianças que chegaram à Instituição nos últimos seis anos envolveu alegação de violência doméstica. E, dentre essas, uma em cada cinco teve reconhecimento judicial da violência. No geral, as mães são as principais vítimas desse tipo de violência.
Os dados também mostram que os estados que mais recebem crianças subtraídas de outros países são, em ordem, São Paulo (45 casos), Rio de Janeiro (20), Paraná (15), Minas Gerais (13) e Santa Catarina (12), se consideradas todas as ações levadas à Justiça desde 2018, seja em andamento ou já encerradas.
A posição que a Advocacia-Geral da União tem adotado em relação a esse cenário é de que a Convenção internacional sobre o tema precisa observar o que já está previsto em tratados de defesa e proteção às crianças para garantir, na prática, o interesse delas.
Para o procurador Nacional da União de Assuntos Internacionais da AGU, Boni Soares, a posição do Presidente da República se alinha à melhor interpretação da Convenção. “O Brasil tem impulsionado um amplo debate internacional sobre a violência doméstica e sua relação com a Convenção da Haia. Temos uma posição crítica à compreensão mais restrita do tratado, que exclui a violência contra o genitor das hipóteses de não retorno da criança. A posição do Presidente da República é uma posição de vanguarda nesse debate”, explica.
A consultora da União Maria Helena Pedrosa, autora das informações contidas na mensagem presidencial, destaca a relevância da discussão. “As crianças têm o direito internacionalmente reconhecido de crescer em um ambiente familiar de felicidade, amor e compreensão. Esse é um direito que as acompanha onde estiverem”, destaca. “Reconhecer que a violência doméstica sofrida pelas mães pode, sim, abalar gravemente o bem-estar físico e psíquico de suas filhas e filhos é uma manifestação de respeito não só à maternidade livre da violência, mas especialmente à verdadeira proteção do melhor interesse da criança e da centralidade de sua proteção”, completa.
Sobre a Convenção da Haia
Firmada em 1980, a Convenção da Haia estabelece um mecanismo de cooperação entre seus 90 estados-membros signatários para facilitar o retorno de crianças levadas ilicitamente a outro país. A subtração internacional de crianças acontece quando um dos genitores tira o menor do seu país de residência habitual sem autorização do outro genitor ou de pessoa que seja codetentora do direito de guarda.
A Convenção da Haia foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 3.413, de 2000. No Brasil, a AGU tem o papel de zelar pela aplicação da Convenção.
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